O Paulo, seu pai e o meu pai.
Por Rosa Artigas

Quando comecei a pesquisar os documentos pessoais do acervo de meu pai para alimentar sua biografia durante as comemorações de seu centenário, em 2015, topei com uma carta, datada de 1946, do engenheiro Paulo Menezes Mendes da Rocha, diretor da Escola Politécnica de São Paulo, apresentando o jovem João Vilanova Artigas para usufruir de uma bolsa de estudos patrocinada pela Fundação Guggenheim, nos EUA. Nessa época, o Artigas era apenas um jovem engenheiro-arquiteto e Paulo Archias Mendes da Rocha era um adolescente.
Foi só mais tarde, no começo dos anos 1960, que Artigas, já maduro na vida, na obra e na liderança da reforma de ensino da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP, convidou o jovem arquiteto, vencedor do concurso para o ginásio do Clube Paulistano, Paulo Mendes da Rocha, para ser seu assistente no Departamento de Projetos da escola. Já se conheciam na convivência dos arquitetos que frequentavam a Vila Penteado na Rua Maranhão, onde funcionava a FAU-USP e entre os professores da arquitetura do Mackenzie, a poucos metros dali, na Rua Itambé; na boêmia do Clubinho dos Artistas ou tomando um uísque após o trabalho no bar do IAB, onde se reuniam para debater e desenhar o futuro dos arquitetos e da arquitetura brasileira. Até hoje essa região do centro de São Paulo concentra um grande número de profissionais nos escritórios, entidades, escolas, empresas e instituições, mesmo que o país pareça ter renunciado ao projeto de um futuro possível.
Paulo Mendes da Rocha viveu, ao lado de Artigas, o entusiasmo da criação da arquitetura e o infortúnio da perseguição política durante a ditadura militar, a partir da cassação dos professores universitários em 1969. Um tempo difícil e lento que começou a se esgotar no começo dos anos 1980.
O comando da Universidade de São Paulo, no processo de redemocratização, resistiu a reintegrar os professores aposentados compulsoriamente. A universidade, no Brasil, custou a rever seu papel nos tempos da ditadura. Na FAU, foram principalmente os alunos, ao lado de alguns professores, que se mobilizaram para trazer de volta o Artigas, o Paulo e o Jon Maitrejean. Figura de reconhecida liderança, ainda que afastado da escola, Artigas tomou para si a tarefa de enfrentamento da burocracia universitária que servia como desculpa para todo tipo de obstáculo posto diante do retorno à normalidade democrática, ainda que regulada por uma lei de anistia frágil, cheia de concessões e interpretações. Quando Vilanova Artigas prestou o concurso para professor titular em 1984, aos 69 anos, sabia que deixaria em breve nas mãos de seus assistentes – Paulo e Maitrejean – a tarefa de dar continuidade à formação de novos arquitetos que a ditadura interrompeu.
Artigas morreu logo após o concurso e o Paulo assumiu brilhantemente a tarefa. Como Artigas, sua criação crítica vigorosa arrebatou mais de uma geração de jovens que enfrentam as novas questões da arquitetura e do urbanismo no século XXI .
Meu pai já havia morrido e eu trabalhava na Fundação Artigas – hoje extinta – no escritório vizinho ao do Paulo , no quinto andar do prédio do IAB. Aprendi a descobrir as semelhanças entre ambos na austeridade dos escritórios, no entra e sai de jovens, na disposição para a conversa. Encontrei também diferenças nas arquiteturas e nos temperamentos. Adorava as conversas sem propósito que tínhamos – Paulo e os amigos que passavam por ali, quando filávamos cigarros ou isqueiros um do outro no hall do elevador, ou tomávamos uma cerveja do bar do IAB, um café de coador no boteco do outro lado da rua Bento Freitas.
Paulo Mendes da Rocha, arquiteto e urbanista, fala de Vilanova Artigas e das principais características de seu estilo. O encontro fez parte da programação paralela da Ocupação Vilanova Artigas.
Comecei, nessa época, uma pesquisa para organizar uma coletânea de algumas obras do Paulo, (Cosac & Naify 2000). A arquitetura brasileira retomava o prestígio editorial perdido nos anos 1980 e o Paulo havia recebido o Premio Mies van der Rohe (1999), em Barcelona. A proposta de publicação da coletânea me fez frequentar o seu escritório quase diariamente. Li todos os textos e depoimentos que havia à disposição nas revistas e nas fitas cassete. Conversamos longamente sobre arquitetura, a sua e a dos outros. A partir dessas conversas o livro acabou se transformando, menos numa coletânea de projetos e mais numa antologia de ideias voltadas para as cidades e a arquitetura. Descobri que ali o mar e os rios, o porto, os territórios transformados tinham um desenho que seguia adiante o legado do Artigas que a essa altura se aquietava no ambiente. Percebi o quanto sua arquitetura se dispunha a propor ideias para ir além da nossa difícil modernidade já constituída, a construção crítica do futuro, o testemunho da capacidade de mobilização do conhecimento para a constituição de um novo território transformado.
Durante os festejos do centenário do Artigas, no ano passado, Paulo atraiu multidões de jovens para ouvi-lo falar sobre Artigas, em todas as mesas de debate, os encontros, seminários. Em todas as oportunidades contou sobre a convivência e as invenções amorosas, a memória do amigo. Como Flávio Mota, talvez pela proximidade ou intimidade, foi quem melhor compreendeu e interpretou a personalidade complexa de Vilanova Artigas.
Em 2000, fiz parte da curadoria da 7a Mostra de Arquitetura da Bienal de Veneza que expôs a obra do Paulo e do Lelé. Depois de dias inteiros nos trabalhos de montagem da mostra, saíamos para jantar e passear por Veneza tendo o Paulo como guia. Em longas conversas, navegando pelos canais e caminhando por vielas e “piazzetas“ ele nos contava sobre o significado da construção daquele território – oportuno – realizado pelo desejo dos homens naquela laguna improvável: as ilhas, os canais, o porto e os portais, as pontes e caminhos, o leão alado flutuando, guardião da palavra e do mar. Nada mais encantador do que o prêmio da Bienal lhe ser conferido pelo conjunto da obra e pela integridade de suas ideias. Em Veneza, a obra de Paulo Mendes da Rocha, o território e a história, seu pai e meu pai, os jovens formados por esse legado informam sobre a grande e possível obra da humanidade.
Rosa Artigas, historiadora.
Maio de 2016